terça-feira, 30 de outubro de 2012

Fazendo gente


FAZENDO GENTEÓ

a história de um desejo

por Homero Reis

 

Fazer gente é uma vontade atávica da humanidade. Não sei se motivada pelo “crescei e multiplicai-vos”, ou se por alguma vontade oculta de ser Deus. O fato é que vivemos numa constante busca de fazer gente que nos sirva, ou que sirva para fazer coisas para nós. Com o vertiginoso desenvolvimento da tecnologia, surgem os robôs – atualmente a forma mais próxima de reproduzir gente fora dos domínios biológicos. Os robôs em sua natureza são servos dos humanos – uma forma escamoteada de fazer escravos. 

Em suma, um robô obedece, não questiona, não tem vontade. Serve apenas. Isso, embora seja um “sonho de consumo”, esconde algumas questões sérias sobre a natureza humana. Pergunto-me em que nos tornaríamos quando todas as nossas ordens e vontades fossem cumpridas? Pergunto-me, também, como seriam nossos relacionamentos se os que nos cercam nos vissem como Senhores Absolutos? Tenho medo das respostas. O fato é que os relacionamentos entre seres igualmente autônomos, legítimos, livres e diferentes produzem um certo nível de tensão fundamental para a educação relacional e desenvolvimento social.

Na literatura mundial há um clássico conto infanto-juvenil, As Aventuras de Pinóquio, que discute esse tema com muita propriedade.

Escrito pelo italiano Carlo Collodi (Florença, 1881) narra a história de Gepeto, “um carpinteiro fazedor de relógios e brinquedos” que, na ânsia de ter um filho, constrói, a partir de um pedaço de madeira, um boneco com características humanas, mas que continua sendo um boneco. Gepeto não constrói um ser para servi-lo, mas para compartilhar de sua vida. Um ser cuja finalidade é aprender a ser humano e integrar-se à humanidade compartindo afeto e companheirismo. Pinóquio é criado boneco, mas tem que aprender a ser humano.

Numa noite estrelada, Gepeto pede à Fada Azul que dê vida a Pinóquio. Começa, então, uma fantástica aventura que vai testar a coragem, a lealdade e a honestidade do boneco, virtudes que ele tem que aprender para se tornar um menino de verdade. Pinóquio não consegue passar imune por inúmeras confusões, inclusive ficando preso na barriga de uma baleia, de onde, num ato de coragem e bravura, foge, salvando Gepeto. Isso lhe é atribuído como a maior virtude e, em recompensa, a Fada lhe transforma em um menino de verdade. Não preciso dizer que o conto termina com um “foram felizes para sempre...”.

O fio condutor da narrativa é, no entanto, muito simples – o que nos torna humanos? Pinóquio nasce da capacidade criadora de Gepeto, mas para se tornar humano necessita libertar-se do seu criador para aprender as virtudes humanizantes. Há, na vida de Pinóquio uma forte tensão entre o que ele deseja fazer e o que consegue fazer, numa luta reveladora do conflito entre o espirito e a carne tão comum no discurso cristão. Nas mais diversas situações vividas pelo personagem, há sempre uma busca pela “verdade” em contrapartida aos interesses pessoais. Seu nariz cresce com a mentira e ele descobre-se normal quanto mais é verdadeiro. E assim a trama vai se construindo até que Pinóquio, pela natureza de suas escolhas e não pela capacidade de realizá-las, adquire o direito de ser humano. Sem se culpar pelo que não é, ele vive a aventura de construir-se humano.

A história de Pinóquio denuncia muito do que acontece conosco. Nascemos biologicamente, mas é na aprendizagem e nas escolhas que fazemos que vamos nos construindo humanos. Somos humanos mais pela possibilidade de escolher, do que por virtudes intrínsecas que julgamos nos acompanhar como se fossem heranças genéticas; somos humanos mais pela capacidade de aprender, do que por nos julgarmos mais especiais que os outros seres; somos mais humanos porque estamos em construção, do que por nos julgarmos perfeitos. O boneco vira gente não pela ação de Gepeto, mas por si mesmo ao viver os conflitos naturais da vida e fazer escolhas nem sempre certas, mas sempre honestas e íntegras. Assim também deve ser conosco. Aprender a fazer escolhas, mesmo que difíceis, mas que nos tornam seres que compartilham a vida em toda a sua plenitude, é mais sábio do que construir “seres” para servir às nossas próprias vaidades.

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