FAZENDO GENTEÓ
a história de um
desejo
por Homero Reis
Fazer gente é uma vontade atávica da humanidade. Não
sei se motivada pelo “crescei e multiplicai-vos”, ou se por alguma vontade
oculta de ser Deus. O fato é que vivemos numa constante busca de fazer gente
que nos sirva, ou que sirva para fazer coisas para nós. Com o vertiginoso
desenvolvimento da tecnologia, surgem os robôs – atualmente a forma mais
próxima de reproduzir gente fora dos domínios biológicos. Os robôs em sua
natureza são servos dos humanos – uma forma escamoteada de fazer escravos.
Em suma, um robô obedece, não
questiona, não tem vontade. Serve apenas. Isso, embora seja um “sonho de
consumo”, esconde algumas questões sérias sobre a natureza humana. Pergunto-me
em que nos tornaríamos quando todas as nossas ordens e vontades fossem
cumpridas? Pergunto-me, também, como seriam nossos relacionamentos se os que
nos cercam nos vissem como Senhores Absolutos? Tenho medo das respostas. O fato
é que os relacionamentos entre seres igualmente autônomos, legítimos, livres e
diferentes produzem um certo nível de tensão fundamental para a educação
relacional e desenvolvimento social.
Na
literatura mundial há um clássico conto infanto-juvenil,
As Aventuras de Pinóquio, que discute esse
tema com muita propriedade.
Escrito pelo italiano Carlo Collodi
(Florença, 1881) narra a história de
Gepeto, “um carpinteiro fazedor de relógios e brinquedos” que, na ânsia de ter
um filho, constrói, a partir de um pedaço de madeira, um boneco com
características humanas, mas que continua sendo um boneco. Gepeto não constrói
um ser para servi-lo, mas para compartilhar de sua vida. Um ser cuja finalidade
é aprender a ser humano e integrar-se à humanidade compartindo afeto e
companheirismo. Pinóquio é criado boneco, mas tem que aprender a ser humano.
Numa noite estrelada, Gepeto pede à Fada Azul que
dê vida a Pinóquio. Começa, então, uma fantástica aventura que vai testar a coragem, a lealdade e a honestidade
do boneco, virtudes que ele tem que aprender para se tornar um menino de
verdade. Pinóquio não consegue passar imune por inúmeras confusões, inclusive
ficando preso na barriga de uma baleia, de onde, num ato de coragem e bravura,
foge, salvando Gepeto. Isso lhe é atribuído como a maior virtude e, em
recompensa, a Fada lhe transforma em um menino de verdade. Não preciso dizer
que o conto termina com um “foram felizes para sempre...”.
O fio condutor da narrativa é, no entanto, muito
simples – o que nos torna humanos? Pinóquio nasce da capacidade criadora de
Gepeto, mas para se tornar humano necessita libertar-se do seu criador para
aprender as virtudes humanizantes. Há, na vida de Pinóquio uma forte tensão
entre o que ele deseja fazer e o que consegue fazer, numa luta reveladora do
conflito entre o espirito e a carne tão comum no discurso cristão. Nas mais
diversas situações vividas pelo personagem, há sempre uma busca pela “verdade”
em contrapartida aos interesses pessoais. Seu nariz cresce com a mentira e ele
descobre-se normal quanto mais é verdadeiro. E assim a trama vai se construindo
até que Pinóquio, pela natureza de suas escolhas e não pela capacidade de
realizá-las, adquire o direito de ser humano. Sem se culpar pelo que não é, ele
vive a aventura de construir-se humano.
A história de Pinóquio denuncia muito do que
acontece conosco. Nascemos biologicamente, mas é na aprendizagem e nas escolhas
que fazemos que vamos nos construindo humanos. Somos humanos mais pela
possibilidade de escolher, do que por virtudes intrínsecas que julgamos nos
acompanhar como se fossem heranças genéticas; somos humanos mais pela
capacidade de aprender, do que por nos julgarmos mais especiais que os outros
seres; somos mais humanos porque estamos em construção, do que por nos julgarmos
perfeitos. O boneco vira gente não pela ação de Gepeto, mas por si mesmo ao
viver os conflitos naturais da vida e fazer escolhas nem sempre certas, mas
sempre honestas e íntegras. Assim também deve ser conosco. Aprender a fazer
escolhas, mesmo que difíceis, mas que nos tornam seres que compartilham a vida
em toda a sua plenitude, é mais sábio do que construir “seres” para servir às
nossas próprias vaidades.
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